DOCÊNCIA

UM OLHAR MULTIDISCIPLINAR

  • UGB FERP UGB
  • Olímpia Maria dos Santos

Resumo

Introdução
Este artigo resume uma pesquisa que buscou encontrar fundamentos teórico-filosóficos para a construção de material didático-pedagógico dentro da temática das questões etnicorraciais para ser utilizado por professores da área de Português. Num primeiro momento, chega à conclusão de que o (re)conhecimento da nação africana, pautado numa recriação mítica, é um percurso obrigatório para divulgar uma história pouco difundida, mas, digna de fazer parte da construção de uma sociedade mais justa e agradável.
O principal objetivo deste trabalho é refletir sobre a (re)criação das culturas tradicionais africanas, como percurso obrigatório para a (re)afirmação dos valores dessas culturas. Haja vista, nos tempos atuais, uma outra demanda que “obriga” à revalorização de sociedades, que foram, por vários séculos, amortalhadas e marginalizadas, torna-se imperioso reconstruir um passado digno e dignificante, grande e poderoso, para servir de alicerce a uma história diferente, substituinte de uma outra, aviltante e reducionista.
No início de 2011, iniciamos o Projeto de Iniciação Científica1: “Estudo da cultura e da literatura afrodescendente nas escolas: algumas reflexões e distorções existentes entre teoria e prática”, com a finalidade precípua de, após fazer o levantamento da aplicabilidade e/ou não das Leis 10639/2003 e 10 465/200832, construir material didático-pedagógico para ser oferecido a professores de Língua Portuguesa e de Literatura, da Rede Estadual do Ensino do Rio de Janeiro.
Partimos, então, da hipótese de que os professores, em sua grande maioria, ainda não trabalhavam as questões etnicorraciais no seu cotidiano escolar. Junto com essa problemática, que acabou sendo confirmada por meio de questionário aplicado aos docentes, também procuramos investigar quais as razões dessa não aplicabilidade da referida Lei. O motivo mais evidenciado foi a carência de material didático-pedagógico.
De posse dessas informações, organizamo-nos, então, para a construção do material didático-pedagógico. A fim de termos uma diretriz quanto à escolha de gêneros e de tipologias textuais, pautamo-nos no Currículo Mínimo do Estado do Rio de Janeiro (cf. referências bibliográficas), especificamente do 6º (sexto) ao 9º (nono) ano3. Esta escolha foi motivada pelo fato de acreditarmos que o ensino de Literatura deve estar presente em todas as séries do ensino, independente de haver e/ou não a nomenclatura dessa disciplina.
Posto isso, outros questionamentos surgiram no momento da elaboração do material4, quando devíamos decidir que direcionamento teórico-filosófico imprimiríamos aos trabalhos. Tínhamos um objetivo definido: trabalhar as questões etnicorraciais, voltadas para a (re)valorização de culturas que, por séculos, foram fragmentadas e estereotipadas, entretanto, deparávamo-nos com outra problemática, relacionada a como falar de questões tipicamente africanas, num Brasil, matizado por tantas culturas, onde é difícil, talvez quase impossível, delimitar as fronteiras de umas e de outras. Por outro lado, depois de algumas leituras, observamos que era necessário fugir dos estereótipos, ainda tão presentes no ensino da história e das culturas africanas.
Em vista disso, optamos por seguir a diretriz da (re)criação do passado ancestral africano, refletido à luz das experiências presentes. Ao retomarmos esse tempo pretérito remoto, pretendemos alcançar os seguintes objetivos: o primeiro, o (re)conhecimento dos princípios norteadores das vidas africanas, antes do colonialismo; o segundo, a consciência de que a África ancestral é uma (re)criação, feita para dignificar a história de um povo, cujas mãos, como diria, Agostinho Neto, “colocaram pedras, nos alicerces do mundo5”.
O corpo deste nosso trabalho fundamenta-se, em vista disso, em mostrar uma breve teorização sobre a (re)criação das culturas ancestrais.
A HISTÓRIA DA AFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR
Hoje, de maneira geral, quase todos se identificam com uma nacionalidade, compreendida como um vínculo de “laços históricos, culturais e lingüísticos”8, associado a um determinado espaço geográfico. É tão natural isso, que, esse fato, muitas vezes, oculta a história de que as nações são criações relativamente recentes, surgidas dentro de um contexto específico, notadamente, marcado pela queda das políticas absolutistas e pela ascensão do liberalismo e do capitalismo. A partir da necessidade dessa representação, naquele dado contexto, outras representações foram sendo “inventadas”, sempre de acordo a acompanhar as transformações, decorrentes de novas demandas.
O conceito de nação é, portanto, dinâmico e, como decorrência desse fato, para apreendê-lo é indispensável interpretar os contextos e pretextos. Sendo assim, conforme os interesses, necessidades e possibilidades diferentes de cada época, os conceitos de nação vão sendo moldados e remodelados na trajetória dos tempos. Aspectos considerados de somenos importância numa dada fase podem ganhar destaque em outra; fatos históricos, na passagem de um tempo a outro, podem receber roupagem focalizada sob outro ângulo; tradições esquecidas emergem do túmulo do tempo e ganham corpos de raízes fundacionais de nação.
Essa maleabilidade da identidade de nação levou estudiosos à conclusão de que o conceito de nação é produto do imaginário. Em Stuart Hall, um dos pesquisadores que se debruçam sobre o assunto, encontramos a corroboração de tal afirmativa, quando diz, por exemplo, que: “As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos.”6
O poder dos discursos sobre fatos acontecidos destaca-se, então, como vetor de ações e de transformações humanas, de certo modo afinadas com alguma espécie de poder e de ideologia. O conhecimento da história passa, sob essa perspectiva, obrigatoriamente, por uma leitura crítica das fontes produtoras dos discursos: quem escreveu, quando escreveu, como escreveu, em que condições escreveu. A perspectiva da história é, sob este ângulo, relativizada, em pareceres sempre passíveis de serem substituídos por outros.
A este respeito, Michel de Certeau afirma: “Toda interpretação histórica depende de um sistema de referência, que este sistema permanece uma “filosofia” implícita particular; que infiltrando-se no trabalho de análise, organizando-o à sua revelia, remete à “subjetividade” do autor.”7A construção da identidade nacional acopla-se a essa maleabilidade de ressignificação ou, em outras palavras, é produto de uma ideação, a cujos objetivos procura atender.
A constatação de que a história é, em parte, tecida nos meandros do discurso e, por analogia possível, de que a nação é representada por uma gama seletiva de histórias e de tradições, estabelece uma linha bastante tênue entre história e ficção e pergunta-se: “Não será também a história uma grande ficção?” Entretanto, mesmo considerando-se o aspecto da criação, passível de estar presente nas duas áreas, “facto” e “fictu” têm suas próprias especificidades, embora, ambas possam se valer mutuamente, num processo de simbiose, apto a alargar o entendimento tanto de uma área quanto da outra. Valemo-nos de outra teórica, Linda Hutcheon, para embasar a afirmativa: “Nessa perspectiva, história e ficção obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de qualquer verdade objetiva; as duas são identificadas como construtos linguísticos, altamente convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com a sua própria textualidade.”8
A reconstrução da história, a remodelação da nação, o anseio por uma distinção identitária são matrizes comuns num contexto atual, “onde tudo o que é sólido desmancha no ar”9. Que país hoje não busca a sua reconstrução identitária? Em se tratando de Brasil, essa reconstituição é bastante arenosa, em vista das múltiplas culturas que formam a realidade do país.
Entretanto, quando se fala de África, é obrigatório reconhecer que uma das bases fundacionais da cultura brasileira assenta-se nesse continente, de onde vierem milhões de negros para servir de mão-de- obra escrava. Este fato tanto confirma a presença decisiva de negros na constituição da cultura brasileira quanto estabelece a necessidade de um ajuste de contas (ainda) com a cultura e a história desse povo.
Por isso, parece-nos oportuno, ao discutirmos o assunto em sala de aula, provocar o conhecimento sobre o passado ancestral africano, no que ele tem de mítico, ou seja, no que tange às bases da construção de uma nação, a fim de os afrodescendentes, mesmo conscientes de que o passado não volta mais, poderem (re)conhecer essa África-Mãe, em substituição a essa outra África criada pelo colonialismo. A nação, aqui, surge como (re)criação de um passado que pode ser ostentado sem medo de preconceitos e de marginalizações.

Como Citar
FERP, UGB; DOS SANTOS, Olímpia Maria. DOCÊNCIA. Simpósio, [S.l.], n. 5, out. 2017. ISSN 2317-5974. Disponível em: <http://revista.ugb.edu.br/ojs302/index.php/simposio/article/view/606>. Acesso em: 25 abr. 2024.